Vida de residente

Doze horas por dia no hospital e um plantão noturno por semana rendem aos médicos recém-formados em São Paulo contato com cenas que até então eles só conheciam através dos livros. Entre os ensinamentos dessa fase da carreira está descobrir que não são super-heróis.



É madrugada no Hospital das Clínicas. A ambulância encosta na entrada do pronto-socorro, trazendo uma pessoa gravemente acidentada. O som da sirene atrai o grupo de médicos que até então conversava no corredor. Eles correm até a maca e começam a verificar os sinais vitais do paciente: respiração, pressão, estado de consciência… Um clima de nervosismo se espalha pelo hospital. As decisões têm de ser rápidas e cuidadosas, pois um erro pode ser fatal. Nessas horas, o coração do médico chega a bater 160 vezes por minuto, ritmo semelhante ao de um maratonista. “É preciso conquistar preparo físico e emocional para seguir na carreira”, afirma o psiquiatra Luiz Antonio Nogueira Martins, professor de psicologia médica da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). A forma mais eficiente de ganhar tal experiência, atestam especialistas do mundo inteiro, é por meio de um programa de residência. Trata-se de um treinamento intensivo da prática do hospital, que equivale à pós-graduação em outras carreiras, por ser uma opção para os já formados.

Cerca de 70% dos médicos graduados em São Paulo emendam a faculdade com uma especialização do gênero, iniciando-a quando têm entre 24 e 27 anos. Sob a supervisão de um professor (que também é médico), atendem a cinqüenta casos de emergência por dia ou vinte consultas pré-agendadas. Em princípio, o que os médicos novatos buscam na residência é um diploma de especialista em áreas como ortopedia, cardiologia e dermatologia. Mas, ao final do curso, com duração entre dois e cinco anos, a experiência revela que a maior conquista nessa transição é a maturidade.

Jornadas esticadas e plantões noturnos são característicos na vida de um recém-formado. A rotina pesada acaba com a perspectiva de freqüentar baladas, shoppings e academias, entre outros resquícios da adolescência. Em média, os residentes trabalham 72 horas por semana, de acordo com a Associação dos Médicos Residentes do Estado de São Paulo. Na conta estão as sessenta horas permitidas pelo Ministério da Educação (o salário da residência, 1 900 reais por mês, é fixo para todo o Brasil), além de um plantão de doze horas que os médicos fazem por conta própria, pelo qual recebem outros 400 reais. Marcelo Rodrigues, bolsista do Hospital das Clínicas, vira mensalmente oito noites em hospitais particulares e acumula 5 100 reais. Ele apresenta duas justificativas para o esforço: sua mulher e uma filha de 6 anos. Os especialistas refutam esse tipo de conduta. “Ou o médico quer aprender, ou quer ganhar dinheiro”, diz o psiquiatra Nogueira Martins. “As duas coisas ao mesmo tempo não dá.” Martins faz essa advertência com conhecimento de causa: depois de acompanhar o cotidiano de 75 residentes do 1º ano da Escola Paulista de Medicina, descobriu que 18% desenvolveram sintomas de depressão e que muitos deles enfrentaram crises de ansiedade. A situação nem sempre melhora ao longo da carreira, e, para uma parcela, as drogas tornam-se uma saída: 14% dos médicos abusam de álcool e substâncias químicas, como drogas e anestésicos, revela outra pesquisa da Unifesp.

São Paulo é uma meca para os residentes médicos por causa de seus centros de excelência em pesquisa e atendimento, entre os quais se destacam o Instituto do Coração (Incor) e o Hospital das Clínicas. Gente do mundo todo viaja para fazer a prova de ingresso a um dos 3 600 postos de residência existentes atualmente na cidade. A concorrência é de dez candidatos por vaga e fica três vezes mais acirrada em carreiras como dermatologia e radiologia, que estão na moda por carregar a fama de ser mais lucrativas. De acordo com o Conselho Regional de Medicina, os forasteiros conquistam 30% das vagas nos hospitais paulistanos. No Hospital das Clínicas, há um curso de capacitação especial para estrangeiros com 27 alunos. “A proposta da residência é formar médicos que vão espalhar um atendimento com bom padrão de qualidade”, diz Fernando Maluf, um dos coordenadores do Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital Sírio-Libanês. Na residência que ele dirige, de oncologia, há apenas um paulista numa turma de oito pessoas. A baiana Aknar Calabrishi, de 27 anos, está aqui desde 2005. Ela conta com entusiasmo que passa catorze horas por dia no trabalho e que ao menos duas horas são destinadas a sessões de bate-papo com especialistas. “Os papas da oncologia freqüentam o hospital e os professores estrangeiros dão aulas por videoconferência.”

A fase mais aguda do amadurecimento dos médicos ocorre no 1º ano de residência. Ela coincide com um período carregado de vivências e emoções marcantes: o primeiro ataque cardíaco, o bêbado que dá escândalo no PS, a cirurgia que termina em morte. “Estava cochilando quando a enfermeira me chamou para fazer um parto. Levantei nauseada e com as pernas trêmulas”, conta Luciana Pricoli, de 27 anos, que hoje se especializa em geriatria no HC. Sua sensação era que a criança ia escorregar de suas mãos, por causa do sangue e do líquido da bolsa estourada. Seu colega da dermatologia, Erick Omar, 31 anos, foi pivô de uma luta inesquecível pela vida de um homem de origem árabe, de 73 anos. “Podia ser meu pai”, lembra. O paciente tinha câncer de intestino e precisava ser operado com urgência. Outro problema no coração, no entanto, tornava a cirurgia muito arriscada. Coube ao residente Omar a tarefa de convencer um médico a realizar a operação e de explicar à família que havia 80% de risco de tudo dar errado. Para a satisfação do residente, a cirurgia correu bem e o paciente em estado grave conseguiu viver mais dois anos. “Foi o tempo suficiente para ele pedir desculpas a quem magoou, a fim de deixar essa vida em paz”, conta Omar.

A expectativa nas costas de um médico é alta. Todo doente quer recuperar-se de forma rápida, indolor, sem seqüelas e, preferencialmente, de graça. Os hospitais, por sua vez, nem sempre dispõem dos melhores equipamentos e remédios para fornecer o tratamento. Entender que não há super-homem que resolva situações assim faz parte do rito de passagem entre a vida de estudante e a de profissional. “Fiquei arrasada certa vez em que três pacientes tiveram paradas cardíacas ao mesmo tempo e havia somente dois médicos de plantão”, afirma Aknar, a residente do Sírio-Libanês, que na época trabalhava no HC. “Conseguimos reanimar somente um deles.” Ainda predomina um tabu a respeito das mortes nos hospitais. Esse é um assunto pouco ou mal explorado nas faculdades e residências. De acordo com os médicos, as mortes são consideradas dignas em apenas duas situações: quando o paciente é idoso ou quando se tentou de tudo para salvá-lo. Uma brincadeira antiga e mórbida, de fazer uma marca no estetoscópio a cada óbito, reflete a falta de jeito para lidar com o fracasso. “O médico tem um sentimento de onipotência, por se achar o guardião da vida”, diz o psiquiatra Marcelo Niel, da Unifesp.

Em novembro do ano passado, os médicos residentes entraram em greve pela primeira vez na história. Mais de 5 700 médicos paulistas aderiram ao movimento, entre eles Renato dos Santos e Daniela Abreu, que além de participar dos debates aproveitaram a pausa para preparar o próprio casamento. A reivindicação fundamental da categoria era que fosse respeitada a natureza da residência: um programa de educação cujo objetivo é ensinar. Os médicos novatos dizem que a greve trouxe melhorias, mas ainda falta supervisão em alguns hospitais da cidade, nos quais eles são jogados à prática e correm mais risco de errar – e de ser processados, podendo até perder o registro profissional. Outra questão que os preocupa é a responsabilidade que assumem em lugares onde o quadro de especialistas não dá conta da demanda. Na Santa Casa de Misericórdia, o pronto-socorro tem sessenta leitos e a espera por atendimento leva em média duas horas. Cabe aos mais jovens fazer uma triagem de dez minutos, que tem a finalidade de organizar a fila de doentes. Os casos urgentes são imediatamente atendidos e quem tem condições de esperar recebe uma senha. “Os médicos recém-formados estão na linha de frente do atendimento de um sistema caótico”, afirma Maria do Patrocínio Nunes, coordenadora da residência da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). “Isso o torna ainda mais perigoso.”

Os jovens que aparecem nas fotos que ilustram esta reportagem representam o perfil típico dos médicos que fazem residência em São Paulo. Eles são em sua maioria brancos e queixam-se constantemente de cansaço – ninguém duvida, a julgar pela palidez do rosto, que quase torna difícil distinguir a cor da pele da do jaleco. Foram criados por famílias com boa situação financeira e só tiveram contato com a miséria no momento em que começaram a atender em hospitais públicos. “Moro no Morumbi e gosto do conforto da casa de meus pais”, diz Henrique Grinberg, de 25 anos, que dá expediente no HC. O garotão é filho de médico, assim como 25% de seus colegas. Outro aspecto comum aos jovens residentes é o fato de 90% serem solteiros. O único casal retratado é formado por dois médicos. Ele é da psiquiatria e ela, da endocrinologia. Três surpresas, entretanto, indicam que há mudanças positivas em curso. A aprendiz de cirurgiã Carla Paz quer se especializar no atendimento de acidentados e acabar com o clube do Bolinha que predomina em sua área. O residente de clínica médica Marcelo Rodrigues decidiu que vai ser para sempre clínico geral, numa época em que a especialização é cada vez mais desejada (por ser a garantia de consultas mais caras). Cauê Mônaco, o médico que anda de triciclo motorizado por causa de uma deficiência degenerativa, é outro que apresenta uma visão diferenciada de sua atividade. Na recente “medicina da família”, que propõe acompanhar o paciente por toda a sua existência, ele encontra espaço para falar de qualidade de vida e de prevenção. Uma prova de que tem sangue novo (e bom) na medicina paulistana.

Texto de: Por Camila Antunes

Fonte: Veja Online