O direito de dormir

“Se não tirar um cochilo de vez em quando, ninguém agüenta”. A afirmação é de quem está, desde setembro do ano passado, dormindo apenas duas horas por noite para deixar tudo pronto para o Carnaval de São Paulo, que começa na sexta-feira (04).

Mesmo sem saber, a aderecista da escola de samba Águia de Ouro Beth Trindade, 41, pratica o sono polifásico, método de dormir “picadinho” defendido por alguns médicos em situações de extrema necessidade. A idéia é simples: quem precisa reduzir bruscamente as horas diárias de sono deve tirar cochilos de, no máximo, 20 minutos, a cada seis horas. Além de aumentar a resistência, os especialistas afirmam que a prática garante as necessidades fisiológicas básicas do organismo, amenizando assim os sintomas comuns de ficar muito tempo acordado, como ansiedade, irritação, alterações de percepção e dificuldade de aprendizado.

“É melhor dormir apenas uma hora e meia à noite e cochilar por curtos períodos durante o dia do que dormir por quatro horas seguidas à noite e passar o resto do dia acordado. A sensação de sono, nesse caso, é muito maior”, diz o neurologista da Universidade Federal de São Paulo Ademir Baptista Silva, especialista em medicina do sono.

A prática não exige adaptação, afirma o médico. Vale para quem precisa de algumas horas a mais acordado durante a noite, seja para trabalhar, estudar ou enfrentar alguma situação excepcional, como plantão no trabalho ou vestibular. Segundo o especialista, é possível reduzir o tempo de sono fragmentando-o durante o dia porque o organismo estabelece prioridades de modo seletivo. Quando há carência de descanso, a tendência é que o corpo entre rapidamente nas fases mais profundas do sono, consideradas regeneradoras, para suprir as necessidades mais urgentes.

Além da recuperação mental e psíquica, é quando dormimos que produzimos certos hormônios e proteínas fundamentais para o perfeito funcionamento do organismo. Isso acontece nos estágios 3 e 4 e na fase REM. “A qualidade do sono é tão ou mais importante do que a quantidade. Em geral, as pessoas só aproveitam cerca de 30% do tempo de repouso, porque é apenas nas fases profundas que o organismo obtém efeitos fisiológicos de recuperação. A maior parte do tempo é gasta durante a fase dois, que não tem a mesma função.”

Sem tempo para estudar para a prova de residência médica, o recém-formado em medicina Adriano de Oliveira Seixas, 26, começou a praticar o sono polifásico para conseguir algumas horas extras de estudo nas madrugadas, porque trabalhava diariamente das 8h às 19h. Durante seis meses, dormiu três horas por noite, complementadas por cochilos de 20 minutos programados a cada seis horas durante o dia.

“Escolhia um cantinho no trabalho e colocava o celular para despertar no bolso. Era só encostar para cair no sono. Nos primeiros 15 dias foi estranho, mas depois me acostumei. Não perdi a atenção e conseguia me manter acordado à noite. Quando ia dormir, desmaiava”, conta o rapaz, que, mesmo assim, emagreceu dez quilos por conta do estresse. “Fiquei nervoso em boa parte do tempo, mas consegui fazer o que precisava. O mais difícil é voltar a dormir normalmente.” Para Alberto Luiz Moura dos Santos, neurologista e diretor do Instituto de Medicina do Sono -clínica especializada no atendimento de pacientes com distúrbios de sono, no interior de São Paulo-, o sono polifásico deve ser praticado apenas como alternativa de emergência, durante um curto período de tempo e não ser adotado como um estilo de vida.

“Essa seletividade do organismo para suprir suas necessidades já é uma indicação de que algo está errado. É uma tentativa de corrigir um erro. Cada pessoa reage de uma forma à falta de sono, mas dormir menos de cinco horas diárias já é o suficiente para começar a ter problemas”, afirma Santos.

Mamíferos polifásicos

O primeiro conceito de sono polifásico surgiu em 1920, após estudos de observação de animais que constataram que a maioria dos mamíferos (mais de 86% das espécies) dormia dessa forma. “Provavelmente o ser humano também era polifásico quando dependia mais da caça. Com o advento da agricultura é que mudamos a nossa maneira de dormir”, diz o neurologista Claudio Stampi, criador do Chronobiology Research Institute, em Boston, nos Estados Unidos. Considerado um dos principais especialistas em sono polifásico no mundo, foi ele quem começou a pesquisar essa prática como método para reduzir os efeitos da falta de sono, na década de 90, entre navegadores solitários, que não podem dormir por muito tempo quando estão em alto-mar.

“Quando encurtamos o sono de oito horas para quatro, por exemplo, perdemos uma parte do estágio REM, a fase mais leve, mas não perdemos os estágios três e quatro. Assim, fazendo vários reinícios de sono (cochilo), ele se torna eficiente”, explica o especialista.

Segundo Stampi, no entanto, o sono polifásico funciona melhor quando não é feito em horários rígidos. “Você terá o melhor aproveitamento quando sentir que é o momento certo para dormir. É como um trem que você deve pegar, mas que não tem hora certa para passar.

Sobre o tempo de permanência nesse trem, o médico é categórico: não se deve ultrapassar os 20 minutos de cochilo. Ao passar desse limite, a pessoa entra em um sono mais profundo e torna-se mais difícil acordar.

Ainda não há consenso entre os pesquisadores sobre os limites desse método. Por quanto tempo alguém é capaz de dormir de modo intermitente? “Nossa pesquisa em laboratório durou um mês e meio. Em relação aos navegadores, os estudos mais longos aconteceram durante uma volta ao mundo, que durou três meses. Ainda não há nenhum estudo de longo prazo para saber qual é o impacto do sono polifásico por um ano”, afirma Stampi.

No caso da aderecista da Águia de Ouro, os poucos minutos de sono no colchonete do barracão é que devem garantir a disposição para todo o Carnaval. “Depois do desfile, ainda não dá para dormir. É a hora de curtir. Assisto às outras escolas, aproveito os bailes nos clubes e este ano ainda vou ser destaque no interior, diz.”

Folha de S. Paulo