Cego desde os 9 anos, estudante conquista diploma de fisioterapia

Edson de Souza perdeu a visão em um acidente e saiu da escola.
Depois de adulto, fez supletivo, conseguiu emprego e, agora, vai se formar

A noite desta sexta-feira (20) terá um significado especial para o estudante paulista Edson de Souza, de 33 anos. Junto com seus colegas de faculdade, Edson vai receber o certificado de conclusão do curso de fisioterapia da UniSantAnna. A colação de grau no Memorial da América Latina, em São Paulo, marca mais uma etapa na trajetória do rapaz, que ficou cego na década de 80, aos nove anos de idade, e só em 2005 conseguiu concluir o ensino médio.

Assista acima ao vídeo sobre a rotina de Edson em casa, no trabalho e na universidade

A vida de Edson até agora pode ser dividida em três períodos: uma infância normal até o dia do acidente no qual perdeu a visão; uma adolescência de inatividade dentro de casa; e uma vida adulta dedicada à busca da independência. “De 2002 para cá eu tive uma grande mudança: saí do zero para um bom estágio, não tinha como me sustentar e de repente as coisas mudaram”, disse.

A ideia de cursar fisioterapia surgiu a partir da insatisfação de Edson com o curso de massagem terapêutica que ele fazia na época, em uma turma específica para cegos. “Eu gostava do curso, mas achava muito prático e queria saber mais coisa teórica. Conversando com alguns colegas que me falaram da área de fisioterapia, achei que dava para fazer. O professor de massagem falou que não dava, que era loucura, mas aí eu arrisquei.”

Sem regalias
Maria Eugênia Mayr De Biase, coordenadora do curso de fisioterapia da UniSantAnna, explicou que, embora parte da metodologia tenha sido adaptada às necessidades especiais do estudante, o mesmo conteúdo era exigido de Edson. “Como é que a gente vai fazer na parte prática? Como ele vai fazer nos estágios? Essa foi a primeira pergunta que fizemos. Com o tempo, a gente foi adequando”, afirmou Maria Eugênia.

De acordo com ela, Edson não foi reprovado em nenhum dos estágios obrigatórios. O estudante afirmou que, nas matérias teóricas, mantinha médias em torno de 8,5.

“No primeiro ano eu gravava as aulas e quando elas terminavam eu ouvia de novo e reescrevia em braile a aula inteira. Aí conseguia acompanhar, mas durante a aula ficava bem perdido”, explicou ele. Foram poucos os professores, de acordo com Edson, que não confiaram em seu potencial. Um dos momentos mais delicados aconteceu no primeiro dia do estágio que ele fez na Unidade de Terapia Intensiva (UTI). “A primeira coisa que disse pra mim quando comecei o estágio foi que ele não conseguia me imaginar lá dentro.”

Segundo Maria Eugênia, o fato de Edson ter sido o primeiro aluno cego do curso exigiu que tanto ele quanto os professores aprendessem juntos uma maneira de contornar a limitação visual. Além de contar com uma ledora a partir do segundo ano, e de poder portar seu computador, equipado com software de leitura, na sala de aula, Edson fazia provas orais (diretamente para o professor, na ausência da ledora, ou ditando as respostas para que ela as escrevesse).

Nos laboratórios, os professores faziam as demonstrações no próprio corpo do estudante. Mesmo assim, alguns professores por vezes precisavam voltar ao início de suas exposições, ao perceber que não haviam incluído informações adequadas para que Edson pudesse entendê-las.

Na disciplina que ensina os universitários a interpretar exames de raio-X e de ressonância magnética, houve um dos impasses mais marcantes. A solução encontrada pela ledora para que Edson pudesse fazer a prova era orientar a mão do estudante com uma caneta para redesenhar as imagens. Durante as aulas, ela descrevia as imagens em voz alta.

“Nós somos da reabilitação, aceitamos isso com mais facilidade, mas no primeiro impacto realmente a gente sempre acha que pode ser que não dê certo. Mas deu”, disse Maria Eugênia.

Do acidente à rebeldia
Aos nove anos, enquanto corria pela calçada da rua em que vivia, em Rio Grande da Serra, na Região Metropolitana de São Paulo, Edson bateu com a cabeça na janela da casa de uma vizinha e sofreu descolamento nas duas retinas. “Nem foi uma pancada forte, mas foi certeira”, contou.

Nos dois meses seguintes, ele foi perdendo gradativamente a visão, até ficar completamente cego. “Me tiraram da escola, parei na terceira série”, contou o formando, filho de uma doméstica e de um funcionário da Rede Ferroviária Federal. Edson disse ter passado a década seguinte dentro de casa. “Meus pais vieram do interior do Paraná, não tinham conhecimento de nada. Como o filho ficou cego, eles adotaram a superproteção.”

Quando completou 18 anos, o estudante diz que se rebelou contra a ideia de não ser autossuficiente, principalmente depois de ouvir as pessoas comentando sobre o que aconteceria com ele após a morte dos pais.

“Eu não queria mais ficar em casa, queria um internato, queria ir embora. De tanto eu tentar, minha prima me ajudou”, explicou ele, indicado a um oftalmologista que lhe deu o endereço da Fundação Dorina Dowill.

Segundo a instituição, todos os anos cerca de 1.500 deficientes de visuais de todas as idades são atendidos por aproximadamente 40 profissionais em um processo de reabilitação. No caso dos adultos, os cursos são voltados ao ensino do braile, orientação em mobilidade e aulas de tarefas cotidianas, incluindo culinária e dicas para reconhecer as roupas.

Em 2001, depois de um ano na fila de espera, Edson conseguiu uma vaga na fundação, aprendeu a ler e a escrever em braile e voltou a estudar em um supletivo. Após terminar o ensino médio, conseguiu, com a ajuda da instituição, um emprego como auxiliar de câmara escura no Hospital Edmundo Vasconcelos, na Zona Sul de São Paulo.

Primeiro funcionário cego
“No início, a adaptação foi meio tensa, porque a gente não tinha nenhum funcionário com deficiência visual”, afirmou Elisete Tavares, gerente do Centro de Diagnóstico por Imagem do hospital e chefe de Edson. “A parte mais difícil foi nossa com ele do que ele com a gente, porque o Edson tem o dom da adaptação, ele quer se superar a cada momento.”

O auxiliar trabalha das 14h às 22h revelando exames digitais e analógicos, tarefa que aprendeu “com uma facilidade incrível” após um curso específico, segundo Elisete. A supervisora do jovem contou que ele não falta ao trabalho nem quando há greve de ônibus ou metrô, e não usa a deficiência como impedimento.

Além do emprego, Edson também encontrou sua esposa através da Fundação Dorina Nowill. Ele e Priscila, jovem de 29 anos com deficiência visual parcial, se conhecerem durante a reabilitação. “Ela é otimista como eu, quer sempre se superar. Ela me completa”, afirmou.

Os dois se casaram há cerca de quatro anos, pouco antes de decidirem cursar o ensino superior – ele em fisioterapia, ela em serviço social. “Foi muito difícil, porque eu estudava de manhã e trabalhava à tarde, e ela trabalhava de manhã e estudava à noite”, contou Edson.

Conquista
Depois de concluírem as respectivas faculdades, os dois decidiram experimentar uma aventura nova antes de iniciar uma nova etapa. “Contratamos um pacote e viajamos para o Ceará no Natal”, disse Edson ao G1 na sala da casa de dois andares que construiu com Priscila no Grajaú, Zona Sul de São Paulo, rodeado de miniaturas, chaveiros e esculturas comprados durante a viagem.

De volta das férias, e prestes a se tornar oficialmente um fisioterapeuta, o rapaz agora traça novos desafios: fazer pós-graduação em ortopedia e conseguir um emprego em um hospital ou clínica “em qualquer área da fisioterapia”.

Segundo a professora Carina Baron, que supervisionou parte dos oito estágios de cinco semanas que o estudante precisou cumprir nos dois últimos anos da faculdade, Edson pode trabalhar sem impedimento com ortopedia, massoterapia, neurologia, estética e na enfermaria de um hospital, entre outras áreas. “Como o leque do fisioterapeuta é muito grande, acredito que ele tem total condição de trabalhar e acredito no potencial dele de ser contratado.”

Primeiro deficiente visual total formado na carreira pela UniSantAnna, Edson agora integra um grupo bastante reduzido de fisioterapeutas brasileiros com algum tipo de limitação visual. Ele é o primeiro fisioterapeuta com 100% de deficiência visual de que Wilen Heil e Silva, diretor do Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional (Coffito), tem notícia. “Conheço alguns, não muitos, com baixa visão, mas com 100% [de deficiência visual] não tive conhecimento”, afirmou. Na Fundação Dorina Nowill, há registro de um deficiente visual total com diploma na área.

O formando explica que a pouca quantidade de colegas na mesma condição que ele é um resultado da falta de abertura. “Tudo depende de oportunidade, não adianta julgar antes e dizer que a pessoa não consegue.”

FONTE: G1.GLOBO.COM